22 de março a 12 de abril de 2025
Guilherme Sota
Exposição do Programa Jovens Criadores na Árvore
Sala 2
Inauguração
16:00 – 22 de março 2025
UM CORPO DE TINTA PRESO À ARGILA DA MANHÃ
“A luz pesou demoradamente sobre a minha memória
eu estava despedaçado em cima de grãos de areia
um corpo de tinta
preso à argila da manhã
preso à alga intacto
o dia
enluvado
rouba o riso
às pedras da cidade”
(Arzila: Estação de Espuma, Hiena Editora, Lisboa, 1987, trad. de Al Berto)
Porque no princípio era a luz, desde tempos imemoriais que o presente deixou de ser forma de encontro, e passou a ser acção, quer dizer: aditamento do tempo a ele mesmo,presença matérica do presente ao/no ser, porque antes do ser não há memória de alguma vez ter existido ser.
Tomando à letra o tema da exposição intitulada: Do ser e do seu Desvelar, amostragem pictórica de: “anotações privadas, rabiscos apressados e passagens diárias”, o que à primeira vista (leia-se impressão do olhar) ocorre inferir é que, tendo como pretexto viajar pelo Norte de África, e fazer da viagem por/a Marrocos uma fenomenologia do espaço físico-cultural e da con/vivência temporária do artista com a natureza magrebina, seu meio-ambiente, e história, há que reconhecer ser este, e não outro, o leitmotiv da matéria corporal explorada, pretexto que serviu de base a uma experiência ontológica em devir, porque o pintor não hesitou em tornar a compreensão, e desvelamento do ser, solo de expatriação, onde o real quotidiano dos temas, sob a forma de diário de viagem, enraizou “a investigação artística e intimidades”, que o sub/consciente (entre Freud e Yung) lhe recomendara para o desejado “envolvimento psicanalítico com a obra” por vir.
Primeiramente, porque o inventário das diferenças lhe proporcionava o conhecimento/pesquisa do legado civilizacional cuja matriz sedimentaria a memória dos passos, que a anterioridade lhe oferecia e abria caminho aos seguintes; segundo, porque tanto lhe fora exigido pela vontade de transpor o imaginário para o espaço da obra, e desse modo, como reconheceu Heidegger: “fazer uso do ser”.
Nessa ordem de ideias, parece ser esta a razão (outras talvez) pela qual a concepção da expressão plástica se explana através da opção por modelos de ordem figurativa, ainda que sincronizados com uma estilização próxima da disformidade e do esquematismo sequencial disponibilizado em trabalhos, ora como Vénus em Ruínas (2024), ora em Cordão de Aourir (12 trabalhos em papel: de Câmara Erógena a Imolação em Aourir ou Espanto das Cariátides), representações alucinadas de uma poética da visualidade re/interpretativa do: ser, mortalidade, tempo, corpo e sexualidade, inscritas, sob a forma de espelhamento/desvelação, expedientes centrados numa personalidade em busca de si mesma, enquanto sujeito que, ao procurar-se, descobre que é sujeito/objecto da sua própria procura.
Em todo o caso, e a partir da constatação de que não se furtam, o pintor e a sua pintura, ao propósito de, com a lição dos mestres, de-compor as linhas de força da expressão plástica que melhor cor/responde à singularidade do seu mester, tanto quando, tornado tempo, tanto reflecte a prolongada duração dos claro-escuros surpreendidos por Kandinsky em Rembrandt, como a dilaceração obsessiva das peças, que o açougueiro deixou em carne viva nos quadros de Francis Bacon, simbólica trabalhada a talhe de pincel por Guilherme Sota, sem descartar uma certa tendência e parentalidade com o(s) diário(s) de Eugène Delacroix (1798-1863), nomeadamente quando este confessa sentir “a grande consolação que (lhe) é comunicada pelo trabalho”, seja na solidão do seu atelier, seja na ”salutar fadiga” que lhe “salvaguarda a saúde da alma”, detalhes opostos, no entanto, à reiterada errância deste jovem artista que, em busca Do ser e do seu Desvelar, decide aventurar-se de mochila às costas, não apenas em direcção ao Heart of Darkness africano, até onde porém o chama o espírito do lugar, sob o signo da descoberta com que a natureza compensa o ser-no-mundo que ele é, e ontologicamente lhe corre nas veias.
Não fora essa vontade insofismável de tornar seus o espírito e a memória bergsonianos, talvez a descoberta Do Ser e do seu Desvelar fosse a utopia realizável perseguida por Guilherme Sota, nómada que se aventurou a fazer do Cordão de Aourir o cordão umbilical da experiência pictórica, que o liga à revelação, ao fazer dele ser de um dia, depois de ter sido corpo de tinta preso à argila da manhã.
Vergílio Alberto Vieira, 2025
escritor e crítico literário
GUILHERME SOTA (2001, Aveiro) é um artista multidisciplinar e co-fundador do coletivo artístico híbrido Vertigo. É licenciado em Artes-Plásticas, com especialização em Pintura, pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto (2019-2023), e atualmente desenvolve o seu trabalho entre o Porto e Aveiro. A sua prática artística atravessa várias áreas, passando por pintura, desenho, música, instalação e escrita, e de tal pluralidade resulta uma obra marcada pela imersividade, na qual temas como Mortalidade, Ser,
Sexualidade e Iconografia são explorados de um modo direto e corpóreo.
Juntamente com o coletivo Vertigo, concebe, organiza e cura eventos híbridos nos quais exposições artísticas se intercetam com movimentos de libertação coletiva, procurando desenvolver espaços multidisciplinares e imersivo.